A vida é incerta. Na juventude, criamos planos e imaginamos futuros diversos. Mas conforme o tempo passa, nos decepcionamos, frustramos, temos sucessos e mudamos de perspectivas e planos. Mesmo assim, frequentemente, existem coisas que seguem junto de nós por todo o percurso, por bem, ou por mal. Esse é o tema central de Confins de um Sonho, mangá de Yumi Sudo publicado em 2023 pela Pipoca & Nanquim, que foi objeto de discussão na nossa call.
Kiyoko e Mitsu se conheceram e se apaixonaram na adolescência, no fim da guerra. Hoje, setenta anos depois, elas construíram as próprias vidas. Kiyoko, agora sofrendo de uma doença degenerativa, casou-se e constituiu uma família; Mitsu, desprendendo-se dos valores tradicionais, fundou uma empresa e viveu sem o matrimônio. Após um breve encontro, Kiyoko, que esquece-se da vida mais a cada dia, relembra os laços com Mitsu, e é através de sua perspectiva que nos é apresentada a história.
A estrutura da obra foi algo muito chamativo: Após o reencontro das duas, vimos os pontos chave da trajetória dessa relação numa ordem inversa, com pequenos ganchos e referências ao passado que contextualizam os eventos e nos ajudam a entender os capítulos seguintes, que vão mais a fundo no passado do casal. A associação entre esse recurso e a doença de Kiyoko nos fez refletir sobre a memória e como ela define a subjetividade que construímos ao longo da vida.
Outro tema central é o peso das escolhas e das circunstâncias que as contextualizam. Poderíamos, como a própria Mitsu o fez, julgar e condenar Kiyoko pelas suas escolhas. Mas será que é realmente possível ignorar o contexto das duas? A pressão familiar, a perseguição social e a impossibilidade de acessar direitos básicos como o casamento (que até o presente momento, em 2024, ainda não é permitido para casais homoafetivos no Japão) são sombras que perseguem nossas protagonistas como fantasmas à espreita.
Também fomos levados a refletir sobre a natureza do amor e do sofrimento. Amar é sofrer, já dizia o encerramento de Rosa de Versailles (1979), e isso vale mesmo a pena? Na relação de Mitsu e Kiyoko, vimos as muitas cores e formas que um laço assume com o tempo. Existe muita dor na história de ambas, que é o aspecto mais visível, mas não pudemos dizer que essa era a única característica desta união. Nos momentos mais simples e frugais, a alegria e a compaixão mostravam o domínio que tinham sobre o casal.
E justamente por isso, mesmo imersas em seus mundos, as duas jamais se deixam esquecer do laço que as une. Nem mesmo a doença consegue apagar os vestígios de Mitsu em Kiyoko… É a trágica beleza deste romance.
Por fim, é importante notar o contexto no qual a história se desenvolve: ao mesmo tempo que vemos todas as mudanças que envolvem o casal, também somos apresentados a um Japão que muda. Mais do que um pano de fundo, as mudanças sociais desses setenta anos interferem em todos os aspectos das vidas das personagens.
Esses foram alguns dos temas que identificamos e discutimos em call, mas, com a escrita poética e delicada de Sudo, poderíamos apontar outras reflexões. A arte também se destaca, em traços delicados que revelam a passagem do tempo com maestria. É uma leitura curta, forte, mas agradável, e foi um destaques do ano.
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